Da Estátua à Pedra – o autor explica-se
Com alguma surpresa de quem me escuta, desde há algum tempo venho a dizer que cada vez me interessa menos falar de literatura. Pode parecer isto uma provocação, a atitude do escritor que, para se tornar mais interessante, lança declarações inesperadas e gratuitas. E não é assim. A verdade é que duvido mesmo que se possa falar de literatura como duvido, com mais razões, que se possa falar de pintura ou que se possa falar de música. É claro que se pode falar de tudo, como se fala dos sentimentos e emoções, seria absurdo pretender reduzir ao silêncio aqueles que escrevem, ou aqueles que leem, ou aqueles que sentem, ou aqueles que compõem música ou que pintam ou que esculpem, como se a obra em si mesma já contivesse tudo quanto é possível dizer e que tudo o que vem depois não fosse mais do que interminável glosa. Não é isso. Acontece, no entanto, que por vezes experimento o desejo de limitar-me a uma muda contemplação diante de uma obra acabada, pela consciência que tenho de que, de certa maneira, nos domínios da arte e da literatura estamos lidando com aquilo a que damos o nome de inefável. E o inefável, precisamente por sê-lo, é o que não pode ser explicado ainda que tenha de se evitar a tentação de cair em ideias de caráter transcendente, onde tudo encontraria uma explicação precisamente no facto de não ter explicação nenhuma.
À primeira vista, uma atitude como esta não parece racional e, para além disso, choca frontalmente com a definição que de mim mesmo faço, uma pessoa essencialmente racionalista, isto é, alguém que tenta que seja a razão a governar a sua vida, inclusivamente num mundo que poderíamos descrever como paralelo, que é o mundo dos sentimentos que vivem ao lado da razão. Por outro caminho, Fernando Pessoa aproximou-se muito do que quero dizer naquele verso que reza: «O que em mim sente está pensando», ainda que eu proponha, e no fundo não é mais do que um jogo de palavras, como um dos muitos com que Fernando Pessoa se entretinha e nos entretém, que digamos: «O que em mim pensa está sentindo».
Há uma definição que, de certa maneira, marcou o meu percurso como escritor, sobretudo como romancista, e que, tenho de confessar, recebo com uma certa impaciência. Trata-se do rótulo gasto de que sou um romancista histórico, o que se confirmaria tanto por alguns livros que escrevi como pela minha relação com o tempo e posição perante a história. Quero dizer, não obstante, que antes de começar a escrever sustentava como uma evidência palmária (por outro lado nada original) que somos herdeiros de um tempo, de uma cultura e que, para usar um símile que algumas vezes empreguei, vejo a humanidade como se fosse o mar. Imaginemos por um momento que estamos numa praia: o mar está ali, e continuamente aproxima-se em ondas sucessivas que chegam à costa. Pois bem, essas ondas, que avançam e não poderiam mover-se sem o mar que está por detrás delas, trazem uma pequena franja de espuma que avança em direção à praia onde vão acabar. Penso, continuando a usar esta metáfora marítima, que somos nós a espuma que é transportada nessa onda, essa onda é impelida pelo mar que é o tempo, todo o tempo que ficou atrás, todo o tempo vivido que nos leva e nos empurra. Convertidos numa apoteose de luz e de cor entre o espaço e o mar, somos, os seres humanos, essa espuma branca brilhante, cintilante, que tem uma breve vida, que despede um breve fulgor, gerações e gerações que se vão sucedendo umas às outras transportadas pelo mar que é o tempo. E a história, onde fica? Sem dúvida a história preocupa-me, embora seja mais certo dizer que o que realmente me preocupa é o Passado, e sobretudo o destino da onda que se quebra na praia, a humanidade empurrada pelo tempo e que ao tempo sempre regressa, levando consigo, no refluxo, uma partitura, um quadro, um livro ou uma revolução.
Por isso prefiro falar mais de vida do que de literatura, sem esquecer que a literatura está na vida e que sempre teremos perante nós a ambição de fazer da literatura vida.
Este encontro entre autor e leitor tem por título Da Estátua à Pedra, e, para cumprir o programa que me propus, não tenho outro remédio senão regressar ao problema de se sou ou não sou romancista histórico. Alexandre Herculano, o grande historiador português do século XIX, dedicou-se também a escrever romances históricos (O Monge de Cister, Eurico o Presbítero e O Bobo), romances que hoje não são fáceis de ler porque estão escritos com um estilo muito denso, lento, com demasiada frequência sobrecarregados de uma retórica romântica dificilmente suportável. De toda a forma, são livros cujo conhecimento é imprescindível se nos referimos à literatura portuguesa do século XIX. No caso de Alexandre Herculano pode-se dizer que a sua obra literária foi uma con- sequência direta do seu trabalho de historiador. Detenhamo-nos agora num outro autor português, mais tardio, muito menos importante, produto de outra formação, para não dizer que não teve nenhuma. Falemos então deste que está aqui, sem estabelecer qualquer outro tipo de comparação. Tendo eu começado a minha vida literária muito cedo, uma vez que aos vinte e cinco anos publiquei um romance que se não era bom tão-pouco era mau, só vinte anos depois voltei a publicar um livro, facto que, por certo, induziu algumas pessoas de boa vontade a perguntar-se se o autor decidiu ficar calado durante anos para ganhar experiências vitais que depois podia trasladar para a literatura. Obviamente respondo que não, que ninguém tem a certeza de viver mais vinte anos. Seria absurdo dizer: «Vou agora esperar vinte anos», como se os tivéssemos garantidos, «para, depois disso, começar a escrever com mais rigor e seriedade». Não foi assim, e de resto toda a minha vida foi feita sem planos, sem projetos, sem estratégias, sem definir caminhos para chegar a determinados objetivos. Na vida, claro, mas também na literatura.
Depois da Revolução de 1974, fui, durante oito meses em 1975, diretor do mais influente jornal português, o Diário de Notícias. Deixei a direção em novembro desse mesmo ano por razões de ordem política, como consequência do que se pode qualificar, sem risco de imprecisão, um contra-golpe de direita, ou de centro-direita, assim se nomeiam agora as coisas, e cujo objetivo foi deter o processo revolucionário que, enfrentando mil obstáculos de dentro e de fora, se tratava de levar por diante em Portugal. A tal contrarrevolução, que também assim se pode designar, teve lugar em novembro de 1975 e deixou-me sem trabalho. Tomei então a decisão mais importante da minha vida de autor: não procurar outro emprego e tentar, finalmente, saber o que poderia fazer como escritor. Tinha já uns quantos livros publicados, cinco ou seis, nada de importante, alguma poesia, crónicas literárias que foram sendo publicadas em vários jornais, e pouco mais. A partir desse momento e durante quatro ou cinco anos vivi exclusivamente de traduções, contornando a situação o melhor que podia. Quem tenha trabalhado nessa área sabe o que significa viver da tradução: esforço mal pago, tarefa pouco reconhecida, muito trabalho, muita entrega, uma infinita paciência. Enfim, é uma história antiga que não vale a pena recordar mais do que aqui foi resumido.
Em 1977, dois anos depois de ter deixado as minhas funções no Diário de Notícias, publiquei um romance que se chama Manual de Pintura e Caligrafia e que de romance histórico não tem nada. Acentuo isto para que se veja até que ponto pôde ser redutora a definição de José Saramago como romancista histórico. O Manual de Pintura e Caligrafia não é História, é um romance de atualidade, escrito no ano de 1976 e que se reporta exatamente às semanas anteriores à Revolução de abril de 1974. É a história de um pintor (não há que estranhar, sempre me interessei muito pela pintura), é a história, dizia, de um pintor medíocre que ainda por cima tem a consciência da sua mediocridade (o que é verdadeiramente extraordinário…), e que, descontente com aquilo que faz, decide mudar a sua maneira de pintar, acreditando que assim melhorará a qualidade do seu trabalho. Acontece, no entanto, que a qualidade nem sempre depende da vontade, e o nosso pintor, ao dar-se conta da sua capacidade para expressar o que profundamente pretende, começa a escrever sobre a pintura que faz e, inevitavelmente, acaba por escrever sobre a escrita que está fazendo. Por isso o livro se chama Manual de Pintura e Caligrafia. A história é contada na primeira pessoa, e aí, tal como logo sucederia noutros romances posteriores, a figura da mulher aparece como um forte elemento de transformação, porque sem ela, sem o «outro» que ela é, sem essa mulher que é citada apenas com a inicial M., o pintor H. não chegaria a descobrir que os caminhos pelos quais transitava não o conduziriam ao conhecimento de si mesmo como homem e como artista. A descoberta do próprio chegará através do conhecimento do outro, a mulher será a guia desse percurso que acabará dando um novo sentido à vida do pintor e, em definitivo, à vida de ambos. O livro acaba na noite da Revolução do 25 de abril de 1974. O futuro dos dois, o pintor e a mulher amada, não sei qual terá sido, não sei se ainda estão felizes ou se qualquer coisa lhes aconteceu, espero que não, que tenha interrompido aquela união. Como se vê, não há aqui nada de romance histórico. Salvo se considerarmos o presente como um facto histórico, mas disso já nos ocupare- mos mais adiante.
O livro que publiquei a seguir chama-se Objeto Quase. Trata-se de uma compilação de histórias mais ou menos fantásticas, de algumas ideias fortes que se me haviam indo impondo e que não estava seguro de poder converter em romances, tendo em conta que naquela época me faltava ainda dominar as técnicas narrativas e também porque os próprios temas, pela sua concentração, pareciam apontar para o for- mato de conto. São seis relatos, uns mais breves, outros mais extensos, que com a História nada têm a ver, e que apontam para um tipo de abordagem mais próximo da ficção científica que do tratamento de factos concretos, reais, presentes, do agora mesmo. Acontece, no entanto, que estas ideias não eram o resultado de algo a que pudesse chamar um «projeto literário». Verdadeiramente, como já disse, nunca fiz projetos, de tal maneira que se em 1976, quando escrevi Manual de Pintura e Caligrafia, tivesse posto num papel aquilo que queria fazer no futuro, encontrar-me-ia sem saber o que escrever. Ao contrário de Balzac (e quando eu digo «ao contrário», é ao contrário em tudo, o mesmo digo «ao contrário» de Fernando Pessoa, que elaborou extensas listas com as obras que sonhava realizar), nunca me passou pela cabeça fazer essas ou outras apostas sobre o futuro.
Depois do Manual de Pintura e Caligrafia e do Objeto Quase, tive a ideia de escrever um livro sobre o tempo da minha infância e adolescência na aldeia, recriar o espírito e os factos da vida no campo, do trabalho, dos sacrifícios, das misérias, das lutas. Acabei realizando o projeto mas não me
referindo ao lugar do meu nascimento e de primeiras vivências, já que optei por introduzir um fator de distanciamento, de tal maneira que situei a ação noutra região de Portugal, um pouco mais ao Sul do lugar em que eu nasci, no Alentejo, onde radica uma tradição antiquíssima de lutas camponesas. Esse livro chama-se Levantado do Chão, do qual tão-pouco se pode dizer que se trate de um romance histórico. É certo que descreve a vida de três gerações duma família camponesa, desde os finais do século dezanove até à Revolução de abril de 1974. Mas, destas três gerações, apenas a primeira pertence com propriedade ao que chamaríamos passado histórico e, portanto, ao descrever o seu modo de vida tive de realizar uma reconstituição de factos passados. Alguém poderia dizer que então teria alguma coisa de romance histórico. Não o vejo assim, em absoluto, essa afirmação desprezaria o enquadramento sociológico e ideológico que o caracteriza.
O título que definiu (pelos vistos de uma vez para sempre…) que se me aplique o rótulo de romancista histórico é, sem dúvida, Memorial do Convento, romance que nasceu duma circunstância fortuita que passo a contar em meia dúzia de palavras. Um dia, estando em Mafra com algumas pessoas contemplando o Convento, pronunciei em voz alta: «Gostaria um dia de pôr isto num romance». Provavelmente, se não as tivesse dito em voz alta, se simplesmente o tivesse pensado e permanecido em silêncio, a própria dimensão da tarefa me haveria intimidado tanto que talvez não tivesse sido capaz de escrever o livro. Aconteceu que, por pronunciar em voz alta aquilo que tinha pensado, me senti obrigado perante as pessoas que me tinham ouvido, e que inevitavelmente não deixariam de perguntar-me depois como levava o livro sobre o Convento… Devo aclarar que a ideia de escrever sobre o Convento de Mafra foi posterior à ideia de O Ano da Morte de Ricardo Reis, no entanto, Memorial do Convento foi publicado em Portugal em 1982 e O Ano da Morte de Ricardo Reis em 1984. A explicação é simples: se enfrentar-me ao Convento de Mafra me pareceu uma ideia tremendamente arriscada, tocar a figura de Ricardo Reis, que é a mesma coisa que dizer Fernando Pessoa, era então o cúmulo da ousadia. Senti tal receio de provocar as iras e os desdéns dos eruditos pessoanos, eu que não tinha diplomas, nem atributos académicos, nem méritos conhecidos ou por conhecer, que disse para mim mesmo, não como o outro «Afasta de mim esse cálice», mas sim «Afasta de mim essa tentação». Por isso o Memorial do Convento foi escrito antes, como se a tarefa não fosse, coisa que acabei por saber depois, muitíssimo mais árdua e difícil que a de descrever o que sucedeu no ano em que morreu Ricardo Reis…
Aparece Memorial do Convento e a partir daí começa a falar-se de José Saramago como um romancista histórico, coisa que seguramente não se haveria dito se tivesse publicado primeiro O Ano da Morte de Ricardo Reis, cuja ação se passava no ano de 1936. Isto levanta uma curiosa questão — já antes enunciada — que é a de saber quando começa a História. O que ocorreu há cem anos é História? Parece que sobre isso ninguém tem muitas dúvidas, mas cinquenta anos, é História? E vinte anos, também será História? E vinte e quatro horas, é História o dia de ontem? A verdade é que não se sabe onde está a fronteira que separa a noção de um Presente sem dimensão de um Passado que as contém todas, partindo do princípio de que tudo quanto tem que ver com o Passado é História e tudo quanto tem que ver com o Presente é Atualidade. Porque, se é verdade que Alexandre Herculano ou Walter Scott, por exemplo, escreveram romances que sem discussão podemos classificar de históricos, no sentido de que são tentativas de reconstituição de uma época e mentalidade determinadas, sem qualquer intromissão do presente (à exceção da linguagem), onde o autor finge ignorar o seu tempo para colocar-se no momento do Passado que pretende reconstituir, no meu caso tenho de dizer que a situação é diferente. No fundo, um romance histórico é como uma viagem que o autor realiza ao Passado, vai, faz uma fotografia e depois regressa ao Presente, coloca a fotografia diante dele e descreve o que viu e a fotografia mostra. Nenhuma das suas preocupações de hoje interferirá de maneira direta na reconstituição dum tempo passado. Assim seria, mais ou menos (porque nestas matérias não convém ser demasiado radical…), o romance histórico tal como o entenderam Walter Scott ou Alexandre Herculano.
Memorial do Convento não pertence a este tipo de romance histórico. É uma ficção sobre um dado tempo do passado, mas visto da perspetiva do momento em que o autor se encontra, e com tudo aquilo que o autor é e tem: a sua formação, a sua interpretação do mundo, o modo como ele entende o processo de transformação das sociedades. Tudo isto visto à luz do tempo em que ele vive, e não com a preocupação de iluminar o que os focos do passado já tinham clarificado. Ver o tempo de ontem com os olhos de hoje. Dar ao autor a liberdade de entrar e sair do romance que está a escrever, porque ele, no seu trabalho, é omnisciente, não está a realizar uma obra de arqueologia, os anacronismos são intencionais já que a visão pessoal do autor é tão válida e pertinente como a dos personagens que o narrador inventa e situa no tempo escolhido.
Com Memorial do Convento publicado, e muito bem acolhido pelos leitores, reuni forças para atrever-me com a figura de Fernando Pessoa, poeta a que cheguei ali pelos meus verdes anos, sob o heterónimo de Ricardo Reis, ainda que então não soubesse o que era um heterónimo nem conhecesse a existência de Pessoa. Da obra magnífica de Ricardo Reis impressionava-me sobretudo um verso que diz «Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo». Quer dizer, deste formidável poeta, que tanto me atraía, indignava-me esta espécie de indolência, esta filosofia de vida tão complacente que se me afigurava monstruosa. E assim, com a admiração por um lado, mas com um rancor surdo por outro, fui vivendo, até que uma tarde, em Berlim, descansando de um passeio excessivo, na sonolência que leva a nossa mente de um lugar a outro, caiu-me do teto uma evidência: o ano da morte de Ricardo Reis. Isto é, pensando que Pessoa, que morreu em 1935, não deixou escrito em lugar algum a data da morte de Ricardo Reis, pensando que o heterónimo não pode viver muito mais que o criador, pensando que todos temos nove meses de vida que não contamos porque não vivemos fora das nossas mães, pensando que talvez depois de mortos possamos contar com outros nove meses de vida, que será mais ou menos o tempo que dura a nossa memória, pensando em tudo isto, a sentença que me caiu do teto, «o ano da morte de Ricardo Reis», misturada com o antigo rancor e a permanente admiração, animaram-me a confrontar Ricardo Reis com o espetáculo do mundo no ano da sua morte que, na minha lógica, teria de ser 1936, quer dizer, o ano em que começou a Guerra de Espanha, o ano em que a besta fascista ocupou a Etiópia, o ano em que o nazismo consolidou posições, o ano em que se criaram as mocidades e as milícias fascistas em Portugal… Num tempo convulso em que o que havia de melhor parecia desmoronar-se, quando se estava incubando, à vista de todos, o ovo da serpente que haveria de devorar tantos milhões de pessoas, Ricardo Reis, o poeta das odes maravilhosas, sentava-se diante do mundo, como se de um pôr do sol se tratasse, e vendo o que se estava a passar, sentia-se sábio. Assim nasceu este romance, que tão-pouco é histórico, que é a resolução de uma fascinação e de um calafrio. A este romance, que obviamente tinha de intitular-se de acordo com a frase que o teto me ofereceu, devo bons momentos da minha vida e, talvez, o impulso de que necessitava para continuar a escrever depois de Memorial do Convento, que alguns críticos consideraram que, pela sua dimensão, podia ficar como obra única e definitiva. Não foi assim, e, após o meu ajuste de contas com Ricardo Reis, continuei em frente.
A Jangada de Pedra, publicada em 1986, descreve a separação da Península Ibérica da Europa e a sua viagem mar adentro como se realmente fosse uma jangada, até se fixar entre a América do Sul e África. Este livro foi entendido de diversas maneiras, sobretudo negativas. Foi dito e mil vezes redito que era um livro contra a Europa que se estava a construir, como se um mero romancista pudesse competir com factos económicos e políticos de semelhante dimensão. Penso que quem tenha lido o livro e tenha da trajetória política do autor uma opinião rudimentar, possa ter formado uma ideia equívoca sobre o que o livro narra. Mas alguém que não era crítico literário, o político catalão Ernest Lluch, desgraçadamente assassinado pela ETA, escreveu um artigo no qual afirmava mais ou menos isto: «Não nos equivoquemos, Saramago não quer que a Península Ibérica se separe da Europa, aquilo que ele pretende é arrastar, levar a Europa para o Sul.» Realmente, seria uma mudança histórica e geológica tremenda, toda a Europa descendo em direção ao Sul… Claro que isto tem que ver com a interminável questão colonizadores/ colonizados, exploradores/explorados, enfim, a dicotomia e a antinomia Norte/Sul, com o que transporta de preconceitos raciais, de domínios económicos, de imperialismo. De forma expressa ou implícita, tudo isso está no livro. A verdade, se me dão licença uma vez mais, tendo em conta o que antes disse, que cada vez gosto menos de falar de literatura, é que o autor apreciaria que a Europa deixasse de ser o continente egoísta que foi até hoje para se converter, interpretando de uma maneira nova as suas tradições, a sua cultura, a sua História, numa entidade moral que acrescentasse ao que tem de positivo uma dimensão que até agora não assumiu, de tal maneira que viesse a ser no mundo um elemento de defesa dos valores de humanidade e reconhecimento dos direitos dos povos que no passado, e seguramente também no futuro, de uma forma ou de outra foram e continuarão a ser ignorados. A Jangada de Pedra foi, na intenção do autor, uma espécie de proposta para a formação de uma nova área cultural, que não seria já a bacia cultural mediterrânica, porque essa cumpriu o seu papel, mas sim uma bacia cultural do Atlântico Sul. A Península Ibérica, entre a América do Sul e a África, tornada ilha, cercada de mar por todos os lados, comunicando com tudo o que está fora dela. É a utopia, justamente o contrário do romance histórico.
Olhemos agora para um livro que se chama História do Cerco de Lisboa e que apareceu em 1989. Como já terão notado, os meus romances caracterizam-se por terem títulos que não são os mais apropriados para o género: um, já citado, chama-se Manual de Pintura e Caligrafia, o que não é de todo título para um romance. Quando apareceu, no final dos anos setenta, um distribuidor de Angola, supondo que era um livro didático, comprou duzentos exemplares. Não sei o que aconteceu a esses volumes: em plena guerra civil, com uma economia depauperada, encomendar duzentos livros que não eram o que prometiam deve ter sido uma tremenda deceção. Seguramente terão ficado por aí abandonados ou se calhar os insetos dos trópicos já os devem ter devorado todos. Depois vem o Memorial do Convento, que também não é título de romance, mais tarde aparece a História do Cerco de Lisboa, que não é História nem romance histórico. Sim é, no entanto, um livro onde se questiona aquilo a que chamamos a «verdade histórica». A ação passa-se em dois planos temporais, o século XII e o século XX, e tem como figura principal uma pessoa sem demasiada importância, para não dizer totalmente insignificante, como por outro lado são quase todos os meus personagens: nos meus livros não há heróis, não há gente muito formosa, talvez nem sequer as mulheres o sejam, ainda que, como em geral não as descrevo, o leitor possa recriar a imagem segundo as suas preferências. O autor prefere dar três ou quatro pinceladas, como pontos cardeais, mas nada de descrever metódica e minuciosamente rostos, alturas, figuras, gestos… o autor prefere que seja o leitor quem assuma essa tarefa e essa responsabilidade. Ora bem, o personagem principal da História do Cerco de Lisboa é um revisor de texto, o «conservador» por excelência, alguém que tem a obrigação de respeitar o que encontra escrito, a autoridade explícita e implícita do documento, de modo que não pode alterar nada, já que o revisor apenas existe para corrigir os erros de fabricação do livro. E no entanto, este homem — e isto leva quarenta e tantas páginas a preparar o leitor para um ato efetivamente insólito —, decide introduzir uma palavra que nega o que de facto é uma verdade histórica, verdade manifesta no livro que está a rever, obra de um historiador, e que tem como título «História do Cerco de Lisboa». No século XII ainda não havia Portugal, estava a formar-se então, quando aquele que seria o nosso primeiro rei conquistou Lisboa aos mouros, ajuda- do pelos cruzados que vinham do Norte da Europa e que se dirigiam à Terra Santa para participar numa das Cruzadas. Irritado com a suficiência arrogante dos documentos históricos e com a evidente falsidade de alguns deles, o nosso revi- sor, onde o historiador havia escrito que os Cruzados, como de facto aconteceu, ajudaram os portugueses a conquistar Lisboa, comete a ousadia, a barbaridade, o sacrilégio de introduzir a palavra «não». E o que acaba por ser publicado, o que aparecerá no livro, é que «os cruzados não ajudaram os portugueses a conquistar Lisboa», o que significa, como disse antes, a negação de uma verdade rigorosamente histórica. A fraude descobre-se rapidamente, aparece uma mulher, diretora editorial, que fala com ele sobre o erro cometido e que, após um processo de sedução mútua, o induz a escrever a sua História do Cerco de Lisboa, que será o terceiro livro com o mesmo título, após o do historiador e o do escritor que está a contar tudo isto. Parece uma barafunda, mas não o é em absoluto. «Que quis dizer com este livro?», querem saber os jornalistas e os leitores. Pois bem, embora o autor não tenha obrigação de explicar o que escreveu, porque o que queria dizer, com maior ou pior sorte, dito está, não posso subtrair-me a esta questão, entre outras razões porque pretendo sublinhar que o autor, neste seu livro, faz justamente o contrário do historiador, isto é, nega aquilo a que habitualmente chama- mos «verdade histórica». Nesta obra, aparentemente a mais histórica de quantas escrevi, sustento que a verdade histórica não existe, que em muitos casos estou de acordo com Eça de Queirós quando dizia a Oliveira Martins que a história é provavelmente uma grande fantasia… Penso que a verdade na História não está num lugar acessível, onde se possa chegar com facilidade. Abrimos um livro de História e deparamo-nos com uma sucessão de dinastias, de relações fastas ou nefastas entre casas reais, nunca entre povos, de guerras e de pazes, tudo ordenado como se uma mão lógica ali tivesse im- posto a sua lei. Nessa História, iluminada com documentos e certificada com selos, dificilmente encontraremos a gente comum, a que parece que apenas tem existência para sofrer os avatares que outros decidem. E, no entanto, sabemos que a História não é apenas coisa de príncipes, daí que o revisor do meu romance decida contrariar o conformismo do historia- dor abrindo, com a sua decisão, diversas portas para os distintos cercos que existem, que já não são apenas os de Lisboa, são também os de algumas pessoas do século XII e, obviamente, as barreiras amorosas que separavam o revisor Raimundo Silva e a editora Maria Sara, que esses são os seus nomes e era hora de que ficassem ditos. Em definitivo, o autor aspira a contar a vida das pessoas que não entram na História, ou melhor, o que ambiciona, no fundo, é escrever o único livro impossível: A História do Passado, esse tempo que é todo o Tempo, o tempo não organizado e catalogado, onde Miguel
Ângelo se confunde com o Homem de Orce, o conquistador aparece junto do separatista que chegará depois, e o anónimo inventor da permuta na troca direta sobressai sobre a nuvem de economistas que trabalham para lograr uma teoria científica que justifique algo tão inumano como o neoliberalismo.
E agora, José? Agora apresenta-se O Evangelho segundo Jesus Cristo. Mas antes de entrar nos comentários a este romance (o mais polémico que escrevi e o que mais consequências de todo o tipo ocasionou não apenas na minha vida de escritor mas também na minha vida pessoal), vou referir-me a um facto que, de tão repetido, acabou por converter-se quase numa regra: após cada livro, encontro-me, invariavelmente, numa espécie de deserto, sem ideias, sem saber o que fazer. Não sei o que virá em seguida e assim posso ficar semanas e meses, nos casos piores mais de um ano, à espera de um assunto que seja capaz de empurrar-me outra vez para a escrita. Até agora chegaram-me sempre as ideias, não posso queixar-me, mas não vale a pena que tenha ilusões, o momento em que se me esgote a capacidade criadora acabará tocando à minha porta e aí não terei mais remédio senão deixar de escrever. Espero que a minha mulher tenha a sensatez de avisar-me, se eu não me der conta de que chegou a hora de me calar, porque a tentação em que caímos, muitos escritores, é a de continuar a escrever quando já não temos nada para dizer. Deveríamos aprender com os desportistas, que se retiram quando não podem mais…
Significa este preâmbulo que, quando acabei a História do Cerco de Lisboa, não tinha nenhuma ideia sobre o livro que viria depois. E que o livro que veio depois tenha sido O Evangelho segundo Jesus Cristo é uma incógnita que não pude decifrar até hoje. É certo que um leitor atento poderá dizer acerca dos livros que escrevi algo assim: «Não há dúvida nenhuma de que existe uma coerência que relaciona os livros deste autor uns com os outros, ainda que os temas sejam diferentes de romance para romance.» Efetivamente, creio que é assim, que essa coerência existe, mas trata-se de uma linha que se interrompe em cada livro e que logo fica em suspenso à espera do que há de vir, não se trata de uma linha que me limite a seguir porque tudo estaria contido nela, pressentido, projetado e programado desde a primeira palavra que escrevi na minha vida… Não é uma linha cuja ponta esteja na minha mão. É, isso sim, uma via que sigo, espero, abandono ou retomo. Se a linha se prolonga é por razões de que não sou totalmente consciente.
O Evangelho segundo Jesus Cristo, dizia, é o romance que gerou mais polémica e é a causa de ter mudado a minha residência de Lisboa para Lanzarote, em Espanha. É um livro que não projetei, porque jamais me havia passado pela cabeça escrever uma vida de Jesus, havendo tantas e sendo tão diferentes as interpretações que dessa vida se fizeram, destrutivas por vezes, ou, pelo contrário, obedecendo às imposições restritivas do dogma e da tradição. Enfim, sobre o filho de José e Maria disse-se de tudo, logo não seria necessário um livro mais, e ainda menos o que viria a escrever um ateu como eu. Simplesmente, o homem põe e a circunstância dispõe e aqui está o que me impeliu a uma tarefa cuja complexidade ainda hoje me assusta: Estava em Sevilha, ia ao encontro de Pilar, minha mulher, e, atravessando a Praça da Campana em direção à Rua Sierpes, li, ao longe, num quiosque de jornais que mais tarde vim a saber era conhecido como o Quiosque de Curro, entre a confusão de jornais e revistas expostos numa lateral, e escrito num português do mais nítido que possa ver-se, estas palavras: «O Evangelho segundo Jesus Cristo». Olhei e segui em frente, atravessei a rua, e dez metros mais à frente, Rua Sierpes adentro, detive-me e disse a mim próprio que aquilo não era possível, que tal coisa não podia existir, de modo que voltei atrás para acabar por comprovar que nem em português, nem em espanhol, nem em italiano, nem em nenhuma língua do mundo estava a palavra «Evangelho», nem a palavra «Jesus», nem a palavra «Cristo». Não quer isto dizer que tive uma alucinação, foi simplesmente uma ilusão ótica, dado que a possibilidade de que Deus houvesse intervindo diretamente, colocando ali umas palavras para logo as fazer desaparecer, não pertence nem à lógica humana nem à lógica divina, se a houvesse: muito se haveria de arrepender Deus de haver mediado neste caso, se tal ocorreu. Num primeiro momento, pensei que a ideia que acabava de surgir diante dos meus olhos poderia servir para um conto, para uma novela. Durante cerca de um ano andei com aquele pressentimento de livro, sentia que deveria ser o seguinte trabalho mas não encontrava a ponta do fio por onde lhe poderia pegar. E aconteceu que, passados meses, fui a Itália e na Pinacoteca de Bolonha, entrando na segunda ou na terceira sala à esquerda, de repente vi todos os pontos de apoio de que precisava para escrever o livro. Depois foi o tempo do trabalho, e o romance está aí e por aí circula.
Com este livro terminou a estátua. A partir de O Evangelho segundo Jesus Cristo, e isto sei-o agora que o tempo passou, começou outro período da minha vida de escritor, no qual desenvolvi novos trabalhos com novos horizontes literários, dispondo portanto de elementos de juízo suficientes para afirmar com plena convicção que houve uma mudança importante no meu ofício de escrever. Não falo de qualidade, falo de perspetiva. É como se desde o Manual de Pintura e Caligrafia até a O Evangelho segundo Jesus Cristo, durante catorze anos, me tivesse dedicado a descrever uma estátua. O que é a estátua? A estátua é a superfície da pedra, o resultado de retirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, a figura, é descrever o exterior da pedra, e essa descrição, metaforicamente, é o que encontramos nos romances a que me referi até agora. Quando terminei O Evangelho ainda não sabia que até então tinha andado a descrever estátuas. Tive de entender o novo mundo que se me apresentava ao abandonar a superfície da pedra e passar para o seu interior, e isso aconteceu com Ensaio sobre a Cegueira. Percebi, então, que alguma coisa tinha terminado na minha vida de escritor e que algo diferente estava a começar.
Ensaio sobre a Cegueira é a história de uma cegueira fulminante que ataca os habitantes de uma cidade. Poderia tratar-se de uma epidemia, de uma praga, isso não está explicado no livro nem importa, a única coisa que se diz é que a gente perde a visão. As consequências de uma cegueira com estas características são óbvias num mundo que, no fundamental, está organizado por e para o sentido da visão: todas as catástrofes imagináveis, e outras que nem queremos imaginar, acabariam arrasando a vida não apenas de um ponto de vista material, mas também destruiriam da noite para o dia todos os valores de consenso social, todas as regras, todas as normas. O homem converter-se-ia definitivamente em lobo do homem. Mas o autor crê que já estamos cegos com os olhos que temos, que não é necessário que nenhuma epidemia de cegueira venha a assolar a humanidade. Talvez os nossos olhos vejam, mas a nossa razão esteja cega. Não somos capazes de reconhecer que foi o ser humano quem inventou algo tão alheio à natureza como a crueldade. Nenhum animal é cruel, nenhum animal tortura outro animal. Têm de seguir as leis impostas pela vontade de sobreviver, mas torturar e humilhar os seus semelhantes são invenções da razão humana. O livro já não se empenha na descrição da estátua, é uma tentativa de entrar no interior da pedra, no mais profundo de nós mesmos, é uma tentativa de nos perguntarmos o quê e quem somos. E para quê. Provavelmente não existe uma resposta e, se existisse, seguramente não seria eu a pessoa capaz de oferecê-la. No fundo, o que o livro quis expressar é muito simples: se somos assim, que cada um se pergunte porquê.
O personagem central da história é outra vez uma mulher. Suponho que às minhas leitoras lhes agradará que isto seja uma constante, porque verdadeiramente, como personagens, quem sempre salva os meus livros são as mulheres. Não é que os homens não sejam pessoas boas, que o são e podem sê-lo, mas ao lado delas aparecem sempre como pequenos aprendizes. Quero clarificar algo que já assinalei antes, a propósito do facto de não se encontrarem heróis nos meus romances, apenas gente normal, que vive vidas normais, embora no caso de Baltasar e Blimunda eles assistam com naturalidade a certos prodígios. Reflito e escrevo sobre pessoas comuns porque essa é a gente que conheço. É provável que as mulheres que invento não existam, talvez não sejam mais do que projetos, talvez me seja mais fácil imaginar um projeto de mulher que um projeto de homem. Em qualquer caso, e para não fugir à questão, acrescentarei que o facto de ter sido criado por mulheres, de viver e crescer sempre entre mulheres, pressupôs, em definitivo, ter aprendido com elas o que efetivamente é benéfico, não no sentido utilitário, mas em profundidade e humanismo. Devo isto às mulheres e, por isso, assim fica refletido nos meus livros.
A figura feminina que é a mulher do médico surge como um claro exemplo que explica a ausência de estratégias literárias no meu trabalho. No princípio do romance aparece um médico oftalmologista que, por ter ficado cego, será conduzi- do a um lugar onde o governo, numa tentativa de evitar que o mal se espalhe, pretende confinar as pessoas que vão sendo infetadas. A mulher, que acompanha o marido até à ambulância, também sobe. Quando o condutor lhe pede que desça, ela responde, mentindo, que acaba de perder a visão. Não está cega, mas acompanhará o marido, e este é um primeiro passo para a definição da sua personalidade. Essa mulher não cegará nunca, ainda que no momento em que entrou para a ambulância eu não o soubesse… Podia ser que cegasse no capítulo seguinte, mas, de repente, quando nele trabalhava, compreendi que esse personagem, a mulher, não podia cegar, porque havia sido capaz de compaixão, de amor, de respeito, de manter um sentido de profunda dignidade na sua relação com os outros, porque, reconhecendo a debilidade do ser humano, foi capaz de compreender. E assim nasceu o único personagem que não perde a visão neste mundo de cegos.
Não direi mais acerca de Ensaio sobre a Cegueira. Ocupemo-nos agora de Todos os Nomes, que é um passo adiante no propósito de descrever o interior da pedra. Devo dizer que quando publiquei Ensaio sobre a Cegueira não estava ainda completamente consciente de que havia começado uma nova etapa literária. Disto fui adquirindo consciência real enquanto escrevia Todos os Nomes, e, com A Caverna e O Homem Duplicado, a evidência deste facto revelou-se-me de forma total e absoluta. Para tratar de explicar melhor o que quero dizer, insistirei na pergunta que tantas vezes fiz a mim mesmo: Que é isto de pretender penetrar o interior da pedra em vez de continuar a descrever a sua superfície? Se, ao começar este pretendido diálogo entre leitor e autor, disse que cada vez me interessa menos falar de literatura, não foi para instalar-me numa contemplação silenciosa das coisas e dos seres, mas sim porque considero que a literatura é apenas uma parte da vida, do tempo, da história, da cultura, da sociedade. Nada mais. Os que escrevemos corremos por vezes o risco de imaginar que a literatura é tudo, e que para além dela não existe mais nada. No entanto, acredito que assim como na nossa vida se vão sucedendo acontecimentos de todo o tipo, também na literatura se sucedem esses acontecimentos, que são expressão do que sentimos e pensamos: a criação é a forma que temos de colocar cá fora as nossas esperanças, as nossas certezas, dúvidas, as nossas ideias. E a minha ideia, ou melhor, a minha preocupação, neste momento ou mais provavelmente desde sempre, ainda que nos últimos títulos se tenha tornado mais evidente, é considerar o ser humano como prioridade absoluta. Por isso, o ser humano é a matéria do meu trabalho, a minha quotidiana obsessão, a íntima preocupação do cidadão que sou e que escreve.
Como os demais, Todos os Nomes é um romance não programado, absolutamente inesperado, que nasceu duma circunstância da minha vida pessoal que passo a explicar. Desde há anos, estou empenhado num projeto de autobiografia que se chamará O Livro das Tentações, que tem como singularidade o facto de ser a narrativa da minha vida até aos catorze ou quinze anos, quer dizer, o tempo em que o mundo, para a criança, se apresenta, todo ele, como uma tentação. As autobiografias geralmente são relatos sobre a vida adulta, mas a mim interessa-me reconstituir pela memória o mundo daqueles anos e a criança que nesses anos cresceu. Digo às vezes que não concebo nada tão magnífico e tão exemplar como irmos pela vida levando pela mão a criança que fomos, imaginar que cada um de nós teria de ser sempre dois, que fôssemos dois pela rua, dois tomando decisões, dois diante das di- versas circunstâncias que nos rodeiam e provocamos. Todos iríamos pela mão de um ser de sete ou oito anos, nós mesmos, que nos observaria o tempo todo e a quem não poderíamos defraudar. Por isso é que eu digo, e esta será a epígrafe desse Livro das Tentações: «Deixa-te levar pela criança que foste». Creio que indo pela vida dessa maneira talvez não cometêssemos certas deslealdades ou traições, porque a criança que nós fomos nos puxaria pela manga e diria: «Não faças isso». Evidentemente, isto é uma fantasia de escritor, que para isso é que os escritores servem, mas ao mesmo tempo poderia ser uma filosofia de vida. Ora bem, preparando este livro sobre a minha infância tive de mencionar um irmão, dois anos mais velho que eu e que morreu quando tinha quatro. Não o recordo, não retive a sua imagem, às vezes parece-me que sim, mas são evidentemente falsas memórias. Como ia falar desse meu mundo, não podia resolver o assunto dizendo simplesmente: «Quando nasci já havia na família outra criança, um irmão que morreu pouco depois», de forma que recorri ao registo civil da aldeia onde nascemos para que me enviasse a declaração de nascimento e de óbito, documentos com os quais poderia pelo menos ficar a conhecer as datas de ambos os acontecimentos. Depois de uma simples investigação, porque a aldeia era pequena e continua a sê-lo, enviaram-me o documento e foi então que me confrontei com a maior surpresa da minha vida: esse irmão de quem finalmente sabia algo concreto, a data exata de nascimento, não tinha morrido porque ali não constava a sua morte. Continuei com as investigações no hospital onde, segundo me recordava de conversas com os meus pais, o meu irmão havia falecido, mas responderam-me que não senhor, que por aí não havia passado nenhum Fran- cisco de Sousa, que esse era o seu nome, ainda que tivessem, e com prazer mo fariam chegar, o registo de alta de um José de Sousa Saramago, eu mesmo, que ali havia estado internado, e me mandariam o quadro com as temperaturas que tive naqueles dias… O mistério do meu irmão continuava enquanto a investigação nos oito cemitérios de Lisboa prosseguia, até que finalmente encontrei a data do falecimento. Morreu, de facto, no hospital que primeiro visitei conduzido pela memória, que demonstrou melhor funcionamento que a burocracia administrativa. A questão que agora devo resolver é se informo o Registo Civil de Azinhaga, nossa aldeia, da morte do meu irmão Francisco, para que atualizem os seus registos, ou se, pelo contrário, deixo as coisas como estão, esperando que dentro de duzentos ou trezentos anos um funcionário do Registo Civil se pergunte e pergunte aos colegas de trabalho: «O que é que se passa com este senhor que já tem trezentos e cinquenta e quatro anos e ainda não morreu?». Neste momento estou tentado a deixar que as coisas fiquem como estão e que pelo menos, nos papéis da burocracia, o meu único irmão continue vivo… Desta história familiar nada passou ao romance, mas Todos os Nomes não existiria se eu não tivesse investigado os dados da breve vida do meu irmão Francisco. No romance aparece uma conservatória do registo civil onde estão, naturalmente, todos os nomes, os nomes dos mortos e dos vivos. Há também um cemitério onde não estão ainda todos os nomes, mas onde todos os nomes virão a estar, e há alguém que procura alguém, outra vez a busca do outro, uma mulher que não será encontrada nunca. E, sobretudo, expressa-se a necessidade urgente de encontrar o outro, talvez porque nessa busca um acabe por encontrar-se a si mesmo. Ao menos isso aconteceu com o meu personagem, um funcionário humilde, parente próximo, diria quase um irmão do Raimundo Silva da História do Cerco de Lisboa. Ambos trabalham com papéis e sobre papéis mas ambos descobrem que esses papéis são pessoas, e que se é certo que as pessoas podem reduzir-se a nomes em papéis, não é menos certo que se podem deixar os papéis para ir em busca das pessoas. A propósito deste livro, apetece-me dizer algo que pode soar insólito: sinceramente, creio que quando escrevi O Evangelho segundo Jesus Cristo era demasiado jovem para escrever o Ensaio sobre a Cegueira e só há dois anos de diferença entre estes livros, mas também acho que quando escrevi o Ensaio era demasiado jovem para poder escrever Todos os Nomes. Evidentemente, cada leitor terá a sua opinião, mas deixem que o autor expresse a que tem. Penso que neste romance há um caminho em direção ao essencial, e aqui regresso outra vez à metáfora da estátua e da pedra. É como se definitivamente tivesse abandonado o projeto de descrever a estátua (que pôde resultar em bons livros, segundo dizem, quem sou eu para opinar em contrário…) e penetrar mais profundamente na pedra obscura do ser do que até então tinha sido capaz. Ensaio sobre a Cegueira decorre num lugar onde vivem seres humanos. A epidemia de cegueira é algo que acontece a essas pessoas e que as conduz à obscuridade. Em Todos os Nomes o universo passa a ser o espírito de uma pessoa que sente a necessidade de encontrar outra pessoa, e esse universo define-se na própria busca. Como disse antes, a mulher que não será encontrada, a necessidade imperiosa de buscar e reconhecer está latente de uma ou outra maneira em todos os meus livros. Esquecer é a morte definitiva e se lográssemos não esquecer, embora saibamos que não é possível guardar tudo na memória, isso será prolongar a vida e os nomes das pessoas, dotá-las de outra existência. Talvez, ao fim e ao cabo, seja essa a tarefa mais importante do escritor de ficções.
Um dia, à entrada de Lisboa, aonde regressava vindo do Norte, vi, ao lado da estrada, um grande cartaz que anuncia- va a próxima abertura de um novo centro comercial. Imediatamente, a imaginação desenhou na minha mente uma escavação profunda, da qual se levantava um edifício de dimensões enormes, de muros potentes, como uma fortificação gigantesca. Acabava de nascer A Caverna, que é a visão de um mundo possível, onde os seres humanos quererão habitar no interior dos mesmos espaços comerciais que lhes vendem o que necessitam ou creem necessitar. É uma metáfora da vida nos países desenvolvidos ou que, não o sendo, se enganam a si mesmos em virtude de uma prosperidade apenas aparente, e é também uma alegoria: A Caverna retoma o mito platónico e por isso a epígrafe que abre o livro diz, «Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros, São iguais a nós». O que A Caverna faz é perguntar ao leitor: «Seremos nós como os prisioneiros da Caverna de Platão que acreditavam que as sombras que se moviam na parede eram a realidade? Esta- remos vivendo num mundo de ilusões? Que temos feito do nosso sentido crítico, da nossa exigência ética, da nossa dignidade de seres pensantes?» Que cada um dê a sua resposta, eu fiz o suficiente confrontando os valores da chamada sociedade ocidental, que nos guiavam até há pouco tempo, ou as- sim se alegava, com estes valores de agora, que não sei aonde nos levam. Se, como Valéry, podemos dizer que «agora sabemos que nós, civilizações, somos mortais», também podemos acrescentar que a do Iluminismo e da Enciclopédia, em que nos iniciamos no pensamento crítico, está dando lugar a outra época, cujos perfis desconhecemos, ainda que algo vamos intuindo. Por exemplo, que as catedrais e as universidades do futuro serão as macro-superfícies comerciais ou os micro-espaços audiovisuais, ambos presididos pelo astuto mercado que regulará paixões e modas, formas e conteúdos, princípios e práticas. Tanto na vida pública como no diálogo de alguém consigo mesmo, se o houvesse, se isto não chegas- se a ser considerado uma reminiscência de espíritos arcaicos com insofríveis tendências românticas.
Assim chegamos a O Homem Duplicado, uma história de dois homens em tudo idênticos que apresenta, uma vez mais, um tema recorrente no meu trabalho: o outro. Com a diferença de que o outro é, no aspeto físico, um mesmo, que o todo de um se repete no outro, como se estivessem diante de um espelho diferente dos espelhos que utilizamos. Aqui, o meu lado direito não é o lado esquerdo do espelho. Acreditamos estar a viver uma alucinação, a pior de todas, porque a pessoa que temos à nossa frente, sendo outra, é também a que nós mesmos somos. Tertuliano Máximo Afonso é um professor de história, António Claro é um ator de cinema. Poderiam não ter-se encontrado nunca, mas os seus universos paralelos fundem-se e a tragédia estala. Digo tragédia, ainda que este seja, talvez, o romance que escrevi onde a ironia e o humor estão mais presentes. Por vezes chega-se a um certo sorriso, esse que desperta a inquietação.
Contei repetidas vezes dois episódios da minha vida que estão relacionados com duas pessoas muito queridas, os meus avós maternos. Contei que esses meus avós viviam de criar porcos, o meu avô Jerónimo era pastor, a minha avó Josefa cuidava da casa e evidentemente trabalhava no campo. Era gente muito pobre, habitavam uma casa paupérrima
onde o frio no inverno não se aguentava, e eles, para defenderem o seu sustento, levavam para a própria cama os dois ou três bácoros mais débeis, para, com o seu próprio calor, os manterem vivos. Se os animais ficassem fora, nas pocilgas mal abrigadas, o mais certo seria que o frio os matasse. Provavelmente, muitos outros fizeram ou fazem o mesmo neste mundo, mas eu fiquei com esta imagem e por isso a repito. A outra história que me acompanha, e quando a relatar não acrescentarei nada mais ao já dito, porque terei consciência de haver então penetrado no interior mais profundo da pedra, também se refere ao meu avô Jerónimo. Tendo ele os seus setenta e dois ou setenta e três anos, sofreu um acidente vascular cerebral que começou por não parecer muito grave mas que aconselhou a que o trouxessem lá da aldeia para Lis- boa a fim de ser tratado num hospital. Já descrevi, em detalhe, que habitavam uma casa muito pobre, de chão de barro, duas divisões, a que fazia de cozinha e o quarto, e também uma espécie de horta com umas quantas árvores, as pocilgas onde estavam os porcos, o galinheiro com as galinhas, os coe- lhos. As árvores eram umas quantas oliveiras, umas figueiras, umas pereiras, o normal que se via numa qualquer casa de aldeia. Então o meu avô, quando a carroça que o havia de levar à estação do caminho de ferro estava à porta, foi ao quintal e despediu-se de todas as árvores, abraçando-se a cada uma e chorando. Este velho pastor, rude, analfabeto, tinha dentro de si um tesouro de sensibilidade tal que, prevendo que não voltaria à sua casa, foi despedir-se dos seres vivos com quem nunca falou, que parece que não sentem, mas ele sim, ele que falava, ele que sentia, reconhecia aquelas árvores que tinham sido para ele a vida, e despediu-se delas como se despediria dos filhos ou dos irmãos ou dos netos. O meu avô não separava a vida da vida, parecia habitar na superfície das coisas mas, no final, demonstrou que o seu mundo estava dentro delas.
Este neto, que todavia continua a sê-lo, apesar de ter mais idade que aquela que eles alguma vez tiveram, este neto, insisto, quando escreve sobre os seus avós está a impedir que morram definitivamente. Creio que compreender isto é avançar no caminho que vai até ao interior da pedra, onde o meu avô sempre esteve sem que eu o soubesse. E creio que para isso escrevo.