Dançar Saramago
Num dos textos fundadores do que são hoje os estudos narrativos, texto publicado em meados dos anos 60 do século passado, Roland Barthes tratou de abrir a análise do relato a campos discursivos e a contextos culturais que, na época, não eram, para isso, considerados. Dizia Barthes: “Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de géneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda a matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse as suas narrativas”; e acrescentava: “A narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias (…).” (R. Barthes, «Introduction à l’analyse structurale des récits », Communications, 8, p. 1).
A citação é longa (mais longa até do que aquilo que aqui fica), mas basta-me para o que vem ao caso. Barthes mencionava o gesto, mas não a dança; mais à frente, falava na pantomima, a par do drama, do vitral e de outras manifestações aparentemente “narrativizáveis”. O que me leva à questão que agora me interessa: é a dança “narrativizável”? Por outras palavras: um bailado pode contar uma história? Devo dizer que, depois do que foi, nos últimos anos, a chamada viragem narrativista das ciências humanas e, com ela, a valorização do princípio da transnarratividade, tem-se agudizado o debate em torno de questões como aquela e outras que lhe estão associadas.
E assim, a pintura, numa tela isolada (isto é, não em políptico), conta histórias? E a música? A música só por si, sublinho, não as palavras (a letra, para nos entendermos) que muitas vezes a acompanham. E a dança?
O desafio está relançado, a propósito do centenário do nascimento de José Saramago, que celebraremos de 16 de novembro deste ano a 16 de novembro de 2022. Do programa que está a ser finalizado constam, pelo menos, três produções de dança, nascidas e desenvolvidas a partir de textos de José Saramago: uma adaptação do Ensaio sobre a Cegueira, pela Companhia de Dança Contemporânea de Évora, um espetáculo já estreado e cuja apresentação se prolongará durante o centenário; um bailado intitulado Sinais de Pausa, pela Companhia Paulo Ribeiro, de Viseu, anunciado como criação inspirada no universo literário saramaguiano; uma adaptação de Memorial do Convento, pelo grupo “Dança em Diálogos”, a estrear em junho de 2022.
Já deixei sugerido aquilo que, nos três casos, constitui um repto muito interessante: até que ponto os gestos e os movimentos do corpo, a interação entre os bailarinos e a relação destes com a música e com os demais dispositivos cénicos são capazes de relatar os amores de Baltasar e Blimunda, a construção da passarola ou a deambulação dos cegos num cenário agreste e hostil. Tudo isto aquém da palavra e da sua articulação em discurso narrativo, quer dizer, prescindindo daqueles recursos verbais que nos dizem quem é esta figura, como se chama, a quem ama e a quem odeia, de onde vem e para onde vai, por que razão fez isto e não aquilo. Uma história, em suma, onde podemos ler grandes sentidos que atormentam a condição humana, conforme a ficção de José Saramago magistralmente a modelou.
Estando em causa romances conhecidos (Memorial do Convento e Ensaio sobre a Cegueira), o propósito de recontar a história pela coreografia pode ser ajudado, do lado do espectador, pelo conhecimento prévio que a leitura faculta; se, mais difusamente, se trata de um bailado inspirado em grandes sentidos representados na literatura saramaguiana, o relato propriamente dito não é convocado de forma explícita, mas permanece o desafio: fazer das palavras lidas uma substância e uma forma outras, tomando como referencial temático a obra de um grande escritor.
Em suma: pelos riscos e pelas dificuldades que a empresa comporta, dançar Saramago será um dos acontecimentos mais ousados, fecundos e consequentes do centenário que aí vem.
Carlos Reis
Comissário para o Centenário de José Saramago