Saramago e o transiberismo
Em Barcelona, por iniciativa da Cátedra José Saramago da Universitat Autònoma, realizou-se o “Congresso Internacional Saramago e o Transiberismo” (Biblioteca Jaume Fuster, 9 a 11 de março passado).
Conforme o programa sublinhava, tratava-se de analisar a visão de Saramago sobre o iberismo, configurada “progressivamente após a ressaca da publicação do romance A Jangada de Pedra, precisamente no contexto da incorporação de Portugal e de Espanha na Comunidade Económica Europeia”.
Uma nota a sublinhar: aquele romance que, na época, conheceu algumas reservas, no tocante à sua receção pela crítica, surge agora revigorado, em função de um tema que ele abordou, mas que, ao mesmo tempo, projetou para o futuro. Esse futuro é o que agora vivemos; nele ecoam, de forma cada vez mais audível, vozes que se pronunciam, com algum ceticismo, acerca da Europa e das suas instituições comunitárias, questão a que Saramago regressou algumas vezes, invariavelmente em termos críticos.
O transiberismo de que se falou no congresso de Barcelona é uma noção projetada a partir do conceito de iberismo, envolvendo a crítica ao chamamento europeísta e também a postulação de uma descoberta mútua, entre Portugal e Espanha. Uma parte importante daquela descoberta implica justamente a desmistificação de imposições culturais de marcação fortemente eurocêntrica, coisa que a Europa cultiva “em relação a si própria”. Cito Saramago, numa conferência de 1998, com o título “Descubramo-nos uns aos outros”: “Para os Estados europeus mais ricos – que, se acreditarmos na sua opinião narcisista, se consideram culturalmente superiores -, o resto do continente continua a ser algo mais ou menos vago e difuso – um tanto exótico, um tanto pitoresco, merecedor, quando muito, do interesse de antropólogos e arqueólogos – com que, apesar de tudo, contando com as adequadas colaborações locais, ainda se podem fazer alguns bons negócios.”
De certa forma, é a “ofensa eurocêntrica”, reforçada pelo contexto político dos anos 80, que explica A Jangada de Pedra. Alguns anos depois, como que na posteridade do seu romance, José Saramago propôs um destino para a jangada e para a viagem, mesmo sendo elas alegóricas. Assim, o movimento da navegação para sul implica “uma nova descoberta, um encontro com os povos ibero-americanos e ibero-africanos digno desse nome” (“Descubramo-nos uns aos outros”). Só assim, no contexto de um (novo) iberismo determinado pela realidade política e social europeia do fim do século XX, poderemos “descobrir em nós, ibéricos, capacidades e energias com sinal contrário aos que fizeram do nosso passado de colonizadores um terrível fardo na consciência” (ibidem).
A partir daqui, penso que fica “claro como água” (título de uma crónica de Saramago) que o autor da Jangada esboça uma ideia de transiberismo diretamente associada a uma longamente reprimida “vocação do Sul” atribuída às nações ibéricas. Há, então, um transiberismo em José Saramago que é um projeto para o futuro; é nesse sentido futurante, como realidade geoestratégica a vir, que podemos falar no transiberismo de Saramago, ficando, de novo, “claro como água” que só ações positivas poderão concretizar a tal vocação do Sul que não implica o abandono da Europa. Trata-se de uma utopia? Depende do que, finalmente, nos convenha entender como tal, sendo certo que Saramago, quando muito, falou naquela “vocação do sul” como “utopia nova”.
Carlos Reis
Barcelona, 9 de março de 2022