Somos seres amputados
Neste momento pensava que tinha três ou quatro maneiras de começar. Afinal, não irei usar nenhuma delas, e a razão da mudança foi a oferta de duas estatuetas que aqui vêem. Aos que conhecem a obra de Francisco Stockinger não surpreenderá que se trate de figuras humanas mutiladas. O homem tem o braço direito reduzido a um coto, com o qual levanta uma espécie de lança. O braço esquerdo também está amputado. E, tal como o homem, a mulher tem ambos os braços mutilados. Quando olhei estas figuras lembrei-me de que talvez a questão mais importante que deveríamos discutir, não só agora, mas todos os dias, não só aqui, mas em toda a parte, seria averiguar se somos, de facto, seres mutilados e, se reconhecemos sê-lo, até que ponto e em quê o somos. Não me refiro, claro, àquelas pessoas que o são fisicamente, mas sim àquelas que o não parecem. Quer dizer, refiro-me a todos e cada um de nós…
Nos meus livros, de forma recorrente, tem aparecido e reaparecido um tema a que já poderíamos chamar “uma constante mutilação”. Vejamos: o Baltasar do Memorial do Convento perdeu a mão esquerda na guerra, a Marcenda do Ano da Morte de Ricardo Reis tem o braço esquerdo paralisado, o centauro do Objecto Quase morre cortado numa rocha delgada, como uma lâmina, que lhe separa a parte humana da parte animal, num outro conto desse livro assiste-se a castração de um porco. Não afirmo que não fui consciente do que fazia ao descrever tudo isto ou que não premeditei, mas digo que em nenhuma dessas ocasiões tive a percepção de estar a usar e a repetir uma ideia com raízes certamente mais profundas do que as que o leitor deduzirá, por si mesmo, da crueza evidente das situações.
A ideia de uma amputação não física do ser, ainda que à primeira vista possa não parecer, tem algo a ver com uma parte do discurso que acabei de proferir. Recordo-vos a passagem em questão (que tive o cuidado de acentuar na leitura), aquela em que me referia a uma humanidade compreendida como “transportadora de tempo” e em que afirmei que todo o entendimento do mundo e da vida só poderá ser ficcionante – histórico para o passado, porque para isso serve a História, caótico para o presente, pelas razões que estão à vista, e utópico para o futuro, porque não creio que seja possível a alguém viver sem um sentido de utopia. Passemos já por cima da habitual objecção de que utopia significa o que não está em nenhum lugar e portanto não tem existência, e respondamos que esse lugar, sendo por definição um deserto, uma vez que nele nada existe, poderá também, como qualquer deserto, tornar-se habitável pelo trabalho, pelo esforço, pela vontade. A utopia, assim considerada, seria aquele tempo e estaria naquele lugar em que o ser humano deixaria de se ver a si mesmo como mutilado, com amputado.
Porque penso eu que somos como seres amputados? Pela nossa própria resistência a reconhecer que o somos. Há poucas semanas, em Espanha, na cidade de Granada, ousei dizer, contra a mais óbvia das evidências, que cada um de nós tem três metros de altura, mas que, ou não sabemos, ou não nos apercebemos, ou simplesmente não acreditamos. E ousei dizer mais: que há algo acima de nós a que poderíamos chegar se o intentássemos. A quem me disser que acima de nós só Deus, responderei: “Não, isso que está acima de nós somos nós próprios.” Chegar a esse outro que não logramos alcançar, mas que poderíamos tocar com os dedos, é que deveria ser o trabalho da nossa vida. Se não chegamos é porque não imaginamos que já lá estamos, se não chegamos é porque não sabemos que se pode chegar, se não chegamos é porque não se nos permite que cheguemos: tudo isso são expressões segundas mutilação. É essa mutilação, sobretudo se não somos conscientes dela, que nos cerca de perplexidades, de angústias, de dúvidas, quando a maior parte das vezes não há tempo nem condições para pensar em algo mais que lutar pela sobrevivência, manter a qualquer preço a cabeça fora de água. Suponho que não me afastarei demasiado do tema, talvez consiga mesmo torná-lo um pouco mais claro, se me detiver agora, por um momento, a invocar um outro tipo de sobrevivência, positiva essa, tanto na sua necessidade como nas suas consequências.
Apesar do meu enraizado cepticismo sobre a utilidade de manifestações desse tipo, fui convidado a participar há tempos, em Espanha, num encontro em que seriam apresentadas e debatidas propostas, dez por cada interveniente, para o próximo milénio. Os filósofos e sociólogos estavam em maioria, no grupo não havia mais que um escritor: este que vos fala. Ora, sendo eu um autor de ficções, parece que um tal tema deveria ter estimulado a minha imaginação. Sucedeu o contrario: enquanto os meus colegas soltavam as velas de um futuro sem limites, eu contentei-me com apresentar dez propostas para o dia seguinte… De facto, não me parece sério presumir de saber hoje o que convirá a pessoas que habitarão este planeta no ano de 2999. Se no ano 1000 se tivesse celebrado um congresso para apresentar e discutir propostas para o milénio seguinte, poderíamos apostar tranquilamente que os sábios reunidos não acertariam em nenhuma delas. Até mesmo um congresso que se realizasse em 1899 com o mesmo fim, pensando não nos próximos mil anos, mas, simplesmente, no século imediato, erraria muito mais do que acertaria. Deixemos portanto nós o terceiro milénio na paz do futuro cósmico e pensemos no dia de amanhã. Mais ainda: preparemo-nos para ele começando já a viver como sobreviventes.
Que se entende em geral por sobreviventes? O que costumamos chamar sobrevivente é aquele que passo por um grande perigo, um terramoto, uma inundação, um naufrágio, um incêndio, um acidente, uma doença grave, e teve a sorte de escapar. Pelo facto de haver sobrevivido talvez passe a compreender melhor a importância, o valor e o significado de estar vivo. Ora, olhando agora par nós todos, penso que se não começarmos a viver desde já como sobreviventes lúcidos e conscientes, amanhã poderá ser tarde demais. Quando os crimes contra o planeta em que vivemos se tornarem irreversíveis, quando o lixo invadir as casas, quando a poluição fizer da atmosfera um tóxico, quando a destruição das florestas tornar o mundo num deserto, quando os rios e os mares se transformarem em cloacas fétidas, os sobreviventes não sobreviverão. Salvo se, entretanto, encontrarem por aí outro planeta onde viver e já estiverem a cometer nele as mesmas atrocidades que temos andado a cometer neste…
Vem a propósito, e servirá para amenizar a gravidade de tom desta conversa, comunicar-vos as minhas ideias sobre a magna obra que foi a criação divina. Em primeiro lugar, penso que Deus, quando criou o universo, aquilo que tinha em mente era entregá-lo todo à sua outra magna criação, isto é, o homem. Realmente, não teria sentido ter criado uma coisa tão grande – com perdão da insuficiência das palavras “tão grande” aplicadas ao universo – para depois pôr o ser humano, sua criação mais perfeita, pois que o criara à sua imagem e semelhança, a viver num minúsculo planeta de uma galáxia secundaríssima. Reconheçamos que não era isso o que poderia esperar-se de um Deus. Portanto, o lógico e o óbvio é termos começado por habitar o planeta inteiro. Quanto tempo durou isso, não sei nem posso saber. O certo certo foi ter percebido Deus que estávamos a dar-lhe cabo do que tanto trabalho lhe tinha custado e, ainda por cima, sabendo Ele que não poderia fazer outro universo, uma vez que este ocupa o espaço todo. Então, que fez Deus? Agarrou naqueles antepassados nossos, em todos eles, e trouxe-os para aqui, dizendo: “Já que vocês gostam de destruir, então que seja um planeta de cada vez, e não o universo inteiro”.
Agora que já sorrimos, rematemos o tema. O sobrevivente, tal como o entendo, tem a consciência, ou talvez o pressentimento, do valor e do significado da vida, por isso está a um passo de deixar para trás o animal mutilado que era, essa amputação da dignidade e do respeito, essa amputação do que é ou deveria ser consubstancial ao ser humano, ou melhor, a este ser que vimos sendo, a este longo e doloroso processo de humanização que é o nosso. A mutilação é o ser incompleto, amputado do que lhe faltava para ter três metros de altura, amputado de si mesmo por a si mesmo não poder alcançar-se.
Não vos demorarei muito tempo mais. Antigamente era comum dizer-se que a sabedoria vinha com a idade e crescia com ela. Alguns velhos faziam o possível para comportar-se como se isso fosse verdade, os novos, quando lhes convinha, faziam de conta que acreditavam. Não se travava de uma sabedoria apenas resultante de um conjunto de conhecimentos, mas de uma sabedoria que seria a consequência, por assim dizer natural, da própria duração da existência, como se dentro de nós houvesse um mecanismo que só precisasse de esperar uma certa hora da vida para entrar em funcionamento e começar a produzir sabedoria. Na verdade, não creio que a idade nos torne mais sábios. Mais lúcidos, sim, talvez, pelo menos enquanto não começar, ela própria, a tirar-nos a lucidez. De todo o modo, há que tomar em consideração o facto de que uma vida longa sempre tem a vantagem de mostrar-nos por mais tempo o espectáculo do mundo, que algo poderá ensinar-nos, sobretudo se não nos contentarmos com a sua contemplação… Tudo isto para concluir que alguma sabedoria devo de ter, afinal, mesmo sendo tão notória, em mim, a falta de conhecimentos. É essa consciência, é a vontade de não me deixar enganar pelas aparências, que me obriga a dizer-vos que, sendo certo que a partir de hoje sou doutor Honoris Causa por esta Universidade, mais certo é que universitários autênticos, desde o primeiro professor até ao último aluno, sois vós, e não eu. Por isso o serralheiro mecânico que fui se pergunta tantas vezes se vós, estudantes, sereis realmente conscientes do privilégio que significa poderdes passar uma parte da vossa vida na universidade.
Não nos iludamos, porém. Ao mesmo tempo que vamos criando e desenvolvendo universidades que preparam profissionalmente pessoas para a vida, estamos fomentando sociedades que, em muitos casos, irão tornar insuportável a vida daqueles que a universidade preparou a pensar apenas na profissão que irão ter. Permita-se-me, então, que aventure que talvez esteja a faltar algo neste quadro, que talvez não seja bastante uma transmissão mais ou menos eficaz de um conjunto de conhecimentos objectivos, que talvez a universidade devesse incluir, urgentemente, no seu plano de estudos um outro tipo de saberes, uma consciência crítica e activa, uma ética de diálogo e participação, uma sabedoria, enfim, que, para formar-se, não tivesse de esperar pela velhice… Entre esses saberes incluiria eu a aprendizagem orientada de um efectivo respeito humano, não o amor universal, a que nenhum de nós é obrigado, mas o simples respeito pelo outro como razão e condição de uma justa reciprocidade.
À primeira vista, a Igreja Católica pede-nos mais do que respeito ao pedir que nos amemos uns aos outros. Mas a mim, com toda a franqueza, não me parece que tenhamos a obrigação de amar-nos uns aos outros. Uma obrigação, sim, temo-la, mais alta, muito mais alta, e essa é a de nos respeitarmos uns aos outros. Ponha-se o respeito no lugar do amor e teremos dado um grande passo em frente. Quem sabe? Se chegarmos ao respeito, talvez consigamos o amor.
Em Estocolmo, durante a cerimónia de entrega do Prémio Nobel, denunciei a falta de cumprimento da Declaração Universal de Direitos Humanos. Não irei repetir aqui o discurso que então proferi. Limitar-me-ei a observar que o contínuo e sistemático desprezo do poder económico e do poder político por esses direitos, as ofensas e as humilhações de que eles são vítimas todos os dias e em todos os lugares, representam também, para nós, formas multiplicadas de amputação, infinitos modos de mutilação, não já interiores ao nosso ser, mas vindas de um exterior implacável para o qual não somos mais do que instrumentos de usar e deitar fora. A Declaração de Direitos Humanos é uma promessa que ninguém se mostra disposto a cumprir. Talvez porque o simples dever de os respeitar e fazer respeitar não tenha posto ainda no nosso espírito a ideia de que, de um ponto de vista ético, tanto valor terá o dever de um direito como o direito de um dever. Talvez valha a pena pensar nisso. Em palavras mais directar, para terminar: reivindiquemos os nossos direitos, sim senhor, reivindiquemo-los todos os dias, aqui e onde quer que seja, mas reivindiquemos também, para os assumir completamente, os nosso deveres.
* No dia 26 de Abril de 1999, José Saramago recebeu o título de doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Brasil. Conforme manda o protocolo, na cerimónia o escritor pronunciou um discurso académico. Contudo, após ler o texto que havia preparado, José Saramago anunciou que, com o consentimento da reitora da universidade, diria algumas palavras de improviso. O que o leitor da Blimunda lê agora é a transcrição dessa intervenção do escritor, que foi recolhida pela UFGRS e publicada em um livreto ainda no ano de 1999.