José Saramago: cem anos depois
Faz hoje um ano, contado dia por dia, começámos a celebrar o Centenário de José Saramago. Faz hoje um século, contado ano por ano, nasceu quem motivou a celebração. E bem a mereceu, conforme atesta a obra produzida, princípio e fim de tudo o que fizemos para evocar José Saramago, já depois de, ainda em vida, lhe terem sido atribuídas incontáveis distinções, culminadas no Prémio Nobel da Literatura, em 1998. Culminadas por ele, mas não esgotadas nele, porque a maior de todas as distinções é outra e bem evidente ao longo deste ano: o reconhecimento da obra saramaguiana por incontáveis leitores, em variados e às vezes bem longínquos lugares. De tal modo que de José Saramago podemos afirmar o que Eça de Queirós um dia escreveu sobre um genial escritor: “Está vivo de uma vida melhor, porque o seu espírito fulge com um sereno e contínuo esplendor.”
Para que fosse possível comemorar, como queríamos, o Centenário de José Saramago, duas coisas, entre outras muitas, foram necessárias: que as vontades se juntassem, tão vigorosas e transformadoras como as que Blimunda recolhia; e que o Centenário fosse sentido como responsabilidade coletiva, dentro e fora de Portugal. Disse-o eu desde o início: o Centenário de José Saramago não é propriedade de ninguém. Nem sequer da Fundação José Saramago. Dela e pelo que me toca, vieram o incentivo e a confiança da sua presidenta, da sua administração, do seu diretor e da sua equipa. A todos agradeço e sei bem que, sem a ajuda de todos e de cada um, o esforço individual mais não teria sido do que uma vontade solitária e insuficiente.
As demais, as outras vontades, foram as de quem nos apoiou. Muitas vontades. Tantas que não é possível mencioná-las todas aqui e agora, o que será feito em devido tempo, porque a tanto obriga o mais elementar dever de gratidão. (…)
Tudo isto é certamente muito importante, mas não mais do que aquilo que quero dizer agora. Isto: há dias, vi uma fotografia que resume muito do que este Centenário foi, no que teve de mais fecundo e gratificante. Numa escola de Évora, um menino de origem africana espreita por detrás de um cartaz, exibindo uma enorme flor, que ele mesmo desenhou e pintou. A Maior Flor do Mundo, pois claro. Nos olhos bem espertos e arregalados daquel e menino – e, por certo, nos de todos os que viveram a alegria que é a descoberta de uma bela história –, leio aquilo que, do meu ponto de vista, mais importa: o dever de formarmos os leitores do futuro. O tal futuro em que, dentro de cem anos (quem cá estiver, dirá), José Saramago voltará a ser celebrado, se as sementes que agora lançámos frutificarem. Se isso não acontecer, os olhos daquele menino terão perdido o brilho, a maior flor do mundo terá murchado e este Centenário não terá valido a pena.
Confiemos, contudo. Ao longo de um ano, José Saramago foi o que dele se fez, em escolas e em bibliotecas, em universidades e em museus, em livros e em revistas, em teatros e em cinemas, em ruas e em praças, por crianças e por académicos, por escritores e por editores, por músicos e por compositores, por bailarinos e por encenadores, por professores e por cineastas, por pintores e por atores. Em muitos lugares, em Portugal e no estrangeiro, com justo destaque para Lanzarote, última casa de Saramago.
Mas atenção: se Saramago já centenário merece a nossa homenagem, isso não quer dizer que devamos apropriar-nos dele. O que este Centenário ensinou é muito simples: Saramago não pertence a ninguém em particular, porque é já de todos nós e capaz, ainda assim, de ser tão singular como singulares são os leitores que nele procuram a universalidade que buscamos nos grandes escritores. Parece contraditório, mas não é. Mais: a universal sobrevida de Saramago não consente que usemos o seu Centenário para circunstancialmente o institucionalizarmos. A história literária (há que conhecê-la) abunda em escritores que, tendo sido capturados pelos poderes vigentes, foram rapidamente engolidos pelas sombras do esquecimento.
José Saramago não pode ser mais um dessa triste família, até porque, bem sabido é, quis legar-nos (e assim fez) uma obra e um pensamento que contestaram e contestam instituições para muitos inatacáveis. Mas não para ele. Sempre lhe foi claro que a literatura, as artes e o pensamento crítico são o reduto final onde se defende a liberdade e os direitos humanos, onde se afirma o dever de sermos solidários para com os outros e de denunciarmos o que é injusto, quando a cegueira da razão ameaça a humana condição. Aquela mesma cegueira que Saramago magistralmente ilustrou num seu romance, agora mais atual do que nunca. Escutemos os seus avisos.
Termino. O Centenário que estamos a encerrar foi oportunidade privilegiada para o reencontro com a atualidade de um escritor que só para os distraídos mora no passado. Mas não é assim, como nos garante a literatura que Saramago escreveu, bem consciente de que nela habita a memória, que é aquilo que nos salva da morte. “Esquecer”, disse ele, “é a morte definitiva”. E acrescentou: “Se lográssemos não esquecer”, seríamos capazes de “prolongar a vida e os nomes das pessoas, dotá-las de outra existência.” Conclusão: “Talvez, ao fim e ao cabo, seja essa a tarefa mais importante do escritor de ficções”.
Assim escreveu José Saramago e não o esquecemos. Por isso, ele está vivo, cem anos depois de ter vindo a este mundo imperfeito que muito observou, que densamente pensou e que desejou melhor do que o fizeram os homens que não atenderam às palavras inscritas no Livro dos Conselhos: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
Carlos Reis
Discurso de encerramento (excertos) do Centenário
Lisboa, Teatro Nacional de São Carlos, 16 de novembro de 2022