Saramago: a escrita como trabalho
Na génese de Memorial do Convento, encontra-se um espaço-edifício que motivou José Saramago a escrever um grande romance. Sublinho que utilizo aqui a expressão motivar no seu sentido mais profundo e consequente: pôr em movimento. E esclareço que fazer de um espaço o motivo para um romance não é coisa absolutamente original e nem mesmo rara na literatura que conhecemos. As Viagens na Minha Terra, O Crime do Padre Amaro ou a ficção neorrealista foram gerados em função de uma funda e quase umbilical relação com certos espaços, fossem eles citadinos ou rurais, puramente físicos ou simbólicos.
No caso que aqui me interessa, não está em causa apenas a utilização de um espaço-objeto monumental (o Convento de Mafra), como pano de fundo para uma história contada. O que esse espaço suscita é um processo de narrativização cuja origem José Saramago descreveu, anos depois, nos Cadernos de Lanzarote, de 1996: “Lá pelos finais de 80 ou princípios de 81, estando de passagem por Mafra e contemplando uma vez mais estas arquiteturas, achei-me, sem saber porquê, a dizer: ‘Um dia gostava de poder meter isto num romance.’ Foi assim que o Memorial nasceu.”
“Meter isto num romance”, diz o escritor, traduzindo um desejo, mas também um desafio, porque o “isto” de que Saramago fala não é um espaço qualquer e nem apenas um convento implantado em Mafra. “Estas arquiteturas”, como ali se lê, são a marca humana de um lugar e de um gigantesco edifício com profundo significado histórico e, como tal, tendencialmente narrativo, conforme o andamento do relato mostra. Como se um e outro, edifício e relato, reciprocamente se alimentassem e se fossem transformando e, com eles, os homens que operaram a mudança do espaço.
Não é da escrita, dos seus incidentes, dos seus avanços e da sua materialidade que Saramago nos fala, quando evoca o seu encontro revelador com o convento de Mafra. De facto, aquele encontro não corresponde ainda, longe disso, à intimidade da oficina do escritor, contexto e pretexto adequados para equacionarmos a dialética entre trabalho e inspiração que agora me interessa. Num testemunho de 1997, subsequente àquela revelação sobre a génese de Convent memorial, José Saramago chega à questão da escrita e ao trajeto que o
conduziu ao romance. E diz: “Como passei das crónicas ao romance? Não sei. (…) Eu acho que me encontrei no Raised from the Ground, que é um livro que foi escrito daquela maneira pelo facto de eu ter estado no Alentejo e de ter ouvido contar histórias. Estive no Alentejo em 1976 e saí de lá com o livro todo arrumado na cabeça. (…) Comecei a escrevê-lo, fui até à página vinte e tal e de repente, sem refletir, sem pensar, sem planear, sem ter posto de um lado os prós e do outro lado os contras, achei-me a escrever como hoje escrevo” (em C. Reis, Diálogos com José Saramago).
Realço e comento três questões que aqui afloram, conduzindo, em progressão, ao núcleo duro do processo da escrita. Primeiro: é possível passar da crónica ao romance (a até alimentar este com aquela), como bem sabemos pelo exemplo de Saramago e pelo de muitos outros. Segundo: há uma explicação para a génese de Raised from the Ground, que não anda longe da que foi aduzida a propósito do Convent memorial. Conhece-se um espaço e o livro fica “arrumado na cabeça”, mas esse é um estádio ainda incompleto; falta, depois disso, o amadurecimento favorecido pela passagem do tempo, em convivência com outros títulos. Terceiro: de repente, sobrevém a epifania do estilo. Tão inesperada e tão inexplicável foi ela que desde logo nos lembramos daquele “dia triunfal” descrito por um poeta genial que afinal, sabe-se hoje, o inventou post facto e para governo da autobiografia que para si queria. Na famosa carta a Adolfo Casais Monteiro, Pessoa falou “numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir”; Saramago confessou ter-se descoberto estilisticamente “sem refletir, sem pensar, sem planear”, assim como se estivesse rendido à magia da inspiração e do seu mistério insondável. Mas não se trata disso. Passado esse episódio fulminante (e nunca saberemos até que ponto se espelhou nele a imagem de Pessoa), eis que a razão está de volta, pelo menos no plano da autoanálise: ao afirmar que se achou “a escrever como hoje escrevo” (hoje, quer dizer, quando tinha entre mãos all names), Saramago anuncia a consciência de um idioleto estilístico que é um continuum, prolongado, pelo menos, até Blindness essay. Um continuum que, seguramente, muito deve ao trabalho e não tanto (ou talvez muito pouco) à inspiração.
(Extrato de “Chamar trabalho à escrita: José Saramago ou o escritor sem inspiração”, comunicação na Academia das Ciências de Lisboa, a 24 de fevereiro de 2022).
Carlos Reis, 25 de fevereiro de 2022